O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

terça-feira, 26 de março de 2013

Um copo de leite é um copo de leite.



(Cozinha. Um "contemporâneo", de camisa regata, arrasta-se até a cozinha; para e pensa, diante de um copo de leite)

Ali está um copo de leite. Ou melhor, um copo com leite. Faz toda diferença: o líquido me interessa, ou melhor, interessa ao meu estômago. Porém, o copo não é indiferente. São coisas distintas, que merecem (e cobram) um tratamento distinto. 

O copo é transparente. Me atrai, pelas inúmeras conotações do vidro: sensação de higiene; cristais, que remetem ao som de taças se chocando num brinde: sucesso nos negócios!

Mas, saindo um pouco da realidade: meu estômago. Devo confessar: minha vontade de beber o leite é alterada, conforme a transparência do copo. 

Quando vejo o leite, meu estômago se contrai: é uma ameixa preta, pretíssima, feia. Mas, se não o vejo, tudo flutua, meu estômago se torna um balão de ar (superação espiritual da fome).

Na fome, sou pacífico. Aéreo, caio de repente num bruto estado poético. Tenho a impressão, às vezes, de que a fome torna o mundo mais pacífico... 

Ao contrário do que dizem: homem com fome não vira bicho. Vira Gandhi. Grande.

(Nesse momento, o "contemporâneo" puxa uma cadeira. Senta-se, de frente para o copo. Fixa o olhar, circunspecto).

Claro: a transparência do cristal (todos os meus copos e pratos são de cristais) é uma espécie de "eco semiótico" da transparência do meu caráter. Sou um homem sóbrio, compreendo e respeito a necessidade.  

Aliás, falando na Índia, acho que a necessidade é um mantra do homem, sempre a governá-lo... 

Índia, que belo país! As pessoas estão sempre juntas: três, quatro, dez no mesmo quarto, no mesmo metro quadrado! Ali, não há mediação entre os corpos, entre as classes... Não há superego. 

Todo esse raciocínio, evidentemente, está implícito no ato de beber um copo de leite. Um ato mecânico, sim, mas recheado de significado. Não fico pensando no significado de todos os meus atos. Não sou metafísico. E, afinal de contas, eu trabalho (preciso pagar os meus cristais).

Sou um cristal, resumindo... Não! Nada disso. Quero dizer: sou como um cristal (sem trocadilhos com comer, obviamente). Risos (quer dizer: dei risada nesse momento). 

Sou como um cristal e ainda faço aliterações: cristal, criança, criado mudo, criado quieto, cravo, crocodilo, crack... crise. Enfim. A poesia é um fluxo involuntário. Tipo mulher com corrimento.

As necessidades, vejam bem, elas existem. Algumas pessoas julgam o contrário, dizendo que as necessidades são supérfluas. Diga isso às crianças africanas! 

É preciso ir na raiz do homem, e a raiz do homem são as próprias coisas! 

Imagine, a extinção das coisas. Interromper a circulação das coisas significa: perfurar a artéria do mundo! 

É a fossa! É a fome generalizada: não só a do estômago, mas a fome espiritual.

O homem é mais do que o estômago. Ele tem direito ao selvi-service do espírito (sempre desejei essa metáfora... ). Não basta só o leite: o copo faz toda diferença.

Não fiquem confusos. Eu sou isto mesmo, do jeito que vocês me veem. 

(Ergue-se. Sai de cena. O copo continua na pia, imóvel, cheio de leite. Uma mosca mergulha em seu conteúdo).





Um comentário:

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