O Coletivo Cinefusão surge, no final de 2008, a partir da iniciativa de trabalhadores de diversas áreas - cinema, jornalismo, publicidade, artes cênicas, filosofia, arquitetura, fotografia -, empenhados em criar primeiramente uma rede colaborativa que pudesse dar conta da junção dessas linguagens e também da possibilidade de abarcar potencialidades em busca de produção artística independente, mas também de reflexões concretas acerca da sociedade. É principalmente sobre este último pilar de atuação política, que o grupo vem, atualmente, pensando o cinema, sempre vinculado a outras expressões artísticas e movimentos sociais.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Um Filme Canalha



Se há algo que salta aos olhos em “A Chef in Love” - tradução difundida do filme “Shekvarebuli Kulinaris Ataserti Retsepti”, realizado na Geórgia, em 1996, por Nana Dzhordzhadze – é a superficialidade com que lida com as questões históricas e relações humanas. Para além do fato de ser uma comédia romântica daquelas bem insossas e repleta de amenidades pueris, é canalha na maneira como torna rasteiro todo e qualquer debate. A sua trivialidade transborda dos próprios conteúdos e atinge a forma, o que se evidencia através da importação de recursos enlatados do cinema norte-americano, sem ao menos reutilizá-los criativamente.

“A Chef in Love” situa-se na Geórgia, em dois tempos históricos distintos, o presente, quando o filme foi realizado, e os anos de 1920, nos quais a Geórgia passa ao domínio da União Soviética, após ser tomada pelo exército vermelho. É no presente, que o artista plástico Anton, às vésperas de estrear uma nova exposição, é convocado para uma visita a Marcelle, uma fotógrafa gastronômica, que irá lhe mostrar escritos guardados do renomado chef de cozinha francês Pascal Ichak, que é tio de Marcelle e autor de um famoso livro de culinária georgiana. Eis aí a desculpa para se recorrer ao banalizado recurso do flashback, que será alternado com as conversas narrativas entre os dois, para no final descobrirmos "surpresos" que o chef francês é pai de Anton.


Durante os flashbacks, passamos, então, a acompanhar episódios da trajetória de Ichak, após conhecer e se apaixonar por Cecília, uma das princesas da Geórgia. É ao seu lado que ele perambula pelo país do Cáucaso, em busca de novos sabores e levando uma vida de verdadeiro “bon vivant”. Quase como um romântico ou renascentista da gastronomia, ele percorre campos de uvas; experimenta iguarias da região, como o kupati; bebe em um só gole 8 litros de vinho, dentro de um chifre de boi; até abrir o restaurante Eldorado, onde irá cozinhar os pratos típicos do país: pato com amêndoas amargas, língua defumada, faisão com pistaches e outros requintes reservados para os mais abastados e, portanto, com evidente distinção social do paladar.


Ironicamente, a metade final do filme é praticamente uma defesa da permanência dessa alta gastronomia, sempre para privilegiados de classe, enquanto espaço gourmet, como gostam de dizer. A maneira como retrata a tomada da Geórgia pelo exército vermelho, sem qualquer relativização a respeito da degeneração dos ideais comunistas, principalmente durante o período de Stalin, simplifica de tal maneira as questões ideológicas, que restam algumas pinceladas morais sobre uma caricatura grosseira do que seria o comunismo: um grupo de homens autoritários, que cantam a internacional em um banquete, ao lado de mulheres masculinizadas (exclusivamente porque são comunistas), e que são todos contra a “arte gastronômica”. “O comunismo desaparecerá um dia, a boa cozinha não”, diz Ichak, em determinando momento, com ar de artista esclarecido, mas esquecendo-se que o comunismo nunca chegou efetivamente a existir para desaparecer, e que a ideia de comunismo continua viva sim para matar o que se chama hoje de alta gastronomia, pois, no comunismo por vir, os banquetes serão abundantes e para todos. E aí sim a gastronomia será arte verdadeira.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Como fazer um filme



Parece-me sempre complicado buscar associações temáticas entre filmes, ainda mais quando se limita ao ponto de categorizar o cinema em nichos, pois as aproximações acabam sendo sempre arbitrárias e até subjetivas. É afundado nesta contradição que retomo esta coluna que pretende se debruçar sobre filmes que tratam de alguma forma da gastronomia. E é justamente neste “de alguma forma” que me dou a liberdade de trazer à tona livres associações para justificar falar sobre cinema. Recentemente, assisti “Como Cheirar uma Rosa: Uma Visita com Rick Leacock à Normandia” (2015), filme atravessado o tempo todo pela culinária, mas que nos fala de outras coisas, talvez mais pertinentes ou não. É justamente na sua despretensão que está a força desta singela celebração do afeto humano e homenagem cinematográfica ao documentarista britânico Richard Leacock.


Dirigido pelo casal norte-americano Les Blank e Gina Leibrecht, o filme em si é a visita que ambos fazem, em 2000, ao amigo Leacock, um dos responsáveis pelo aprimoramento do chamado “cinema-direto”, através da sincronização de som e imagem durante a captação, que permitia menor interferência do cineasta sobre a realidade filmada. É em sua casa, na Normandia, no norte da França, que Leacock se abre para uma conversa informal filmada por Les Blank e que resulta em um perfil biográfico muito singular do diretor britânico. A simplicidade do filme dialoga formalmente com a simplicidade de Richard Leacock, que recebe seu amigo com ternura, enquanto cozinha. Em meio à deslumbrante paisagem da propriedade do cineasta, que “Como Cheirar uma Rosa: Uma Visita com Rick Leacock à Normandia” é, antes de tudo, uma aula sobre o próprio cinema. Aos 79 anos, quando foi filmado, Leacock se debruçou sobre lembranças de sua carreira, as quais são ilustradas por Les Blank através de imagens dos filmes que ele cita.

  

Por mais que aparentemente estejamos frente a um senhor com a vida ganha, que se acomodou ao seu modo de vida pequeno burguês, a essência de Leacock vai se descortinando e passamos a uma compreensão mais profunda, inclusive da generosidade política deste personagem que, antes de tudo, doou sua vida ao desenvolvimento de uma linguagem. São nas sutilezas das conversas que percebemos o homem por trás do artista e o artista que apequena o homem. Entre o preparo de um cordeiro, o descascar de batatas e a afetuosa relação que tem com sua companheira e parceira no cinema, Valerie Lalonde, o cineasta escancara o seu amor pela imagem e pela simples ideia de transmitir ao espectador as sensações daquilo que capta com sinceridade. É comovente, por exemplo, o carinho que ele demonstra por uma imagem, a princípio banal, de um casal de japoneses que tentam utilizar um telefone de rua sem sucesso. Leacock extrai da mais ingênua imagem significados que atravessam a sociedade e as inquietações do homem. Tudo, portanto, está na sutileza da captação.

Leacock morreu em 2011 e o diretor do filme, Les Blank, em 2013, ainda sem ter finalizado o filme, que foi editado e lançado pela viúva de Les Blank, Gina Leibrecht, que assina a direção ao seu lado. Sem ser pedante, as imagens revelam aos poucos o complexo ser humano por trás da simplicidade que imprime em seus filmes e também na gastronomia que tem como hobby. A associação entre a sutileza com que prepara um dos pratos mais populares da França, o pot-au-feu, um guisado de carne com ervas aromáticas (talvez equivalente ao nosso “picadinho”), e o próprio modo com que encara a realização cinematográfica é inevitável. Se o paladar é estimulado com os sabores que te levam para outros lugares, os filmes também devem levar o espectador a “sensação de estar ali”, como insiste Leacock, para voltar a si transformado, absorto em novas compreensões do mundo que não as habituais.  


É a verdade da imagem, não em um sentido moral, mas dentro da perspectiva de uma ética cinematográfica que Leacock parece querer transmitir. Em um dos momentos em que se revela a coerência do homem por trás das câmeras, ele relembra de um de seus filmes, no qual captou o momento em que políticos discutem economia e questões políticas, em um quarto de hotel, quando um camareiro chega com o almoço que foi pedido. Ao invés de desligar a câmera, ele segue filmando a patética discussão que, agora, mistura, as mesmas questões políticas com a preocupação de encontrar os bifes mal ou bem passados e seus respectivos donos. Mais uma vez, a simplicidade do olhar, quase ingênuo, explode em significações, trazendo uma triste e sarcástica nota sobre os caminhos que o capitalismo nos impõe. Longe de ser um conformado, Richard Leacock celebra a vida, mas não sem determinar o que olhar e como olhar, para dali tirar toda a força de seus filmes. É assim que “Como Cheirar uma Rosa”, para além das rosas, talvez nos ensine, afinal, algo sobre como fazer um filme.